Dossier

A perspectiva política nas práticas clínica e sociocomunitária da musicoterapia no Brasil

The political perspective in the clinical and social community practices of music therapy in Brazil

A perspectiva política en las prácticas clínicas y sociocomunitarias de la musicoterapia en Brasil

Paz Kezia

ECOS - Revista Científica de Musicoterapia y Disciplinas Afines

Universidad Nacional de La Plata, Argentina

ISSN-e: 2718-6199

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 7, e024, 2022

revista.ecos@presi.unlp.edu.ar

Recepção: 14 Julho 2021

Aprovação: 23 Março 2022



DOI: https://doi.org/10.24215/27186199e024

Resumen: Este artículo señala reflexiones sobre la perspectiva política en las prácticas clínica y sociocomunitaria de la musicoterapia en Brasil. El trabajo busca acercarse a la política en los diferentes ámbitos que constituyen la práctica musicoterapéutica; a saber: la salud, la clínica y la música. Considerando estas relaciones, se concluye que el campo de discusión sobre la política pertenece a la musicoterapia en su conjunto, y no sólo al campo social y comunitario, y que la musicoterapia es un poderoso instrumento clínico-político, capaz de implicarse en la transformación de los contextos sociales.

Palabras clave: Musicoterapia, clínica, política.

Resumo: Este artigo aponta reflexões sobre a perspectiva política nas práticas clínica e sociocomunitária da musicoterapia no Brasil. O trabalho busca abordar a política nas diferentes esferas que constituem o fazer musicoterapêutico; são elas: a saúde, a clínica e a música. Considerando essas relações, conclui-se que o campo de discussão sobre a política pertence à musicoterapia como um todo, e não apenas ao campo social e comunitário, e que a musicoterapia é um potente dispositivo clínico-político, capaz de implicar-se na transformação de contextos sociais.

Palavras-chave: Musicoterapia, clínica, política.

Abstract: This article points out reflections on the political perspective in the clinical and socio-community practices of music therapy in Brazil. This work seeks to approach politics in the different spheres that constitute music therapy; these are: health, clinic and music. Considering these relations, it is concluded that the field of discussion about politics belongs to music therapy as a whole, and not only to the social and communitarian field, and that music therapy is a powerful clinical-political device, capable of implicating itself in the transformation of social contexts.

Keywords: Music therapy, clinic, politics.

Introdução

Neste artigo, é descrita uma reflexão teórica sobre o tema da perspectiva política na prática musicoterapêutica clínica e sociocomunitária no Brasil.

As bases teóricas deste trabalho são compostas por múltiplas referências do campo da prática clínica no campo da saúde mental, incluindo teóricas(os) do campo da psicanálise, da psicologia social e da saúde coletiva.

No campo da musicoterapia, as referências são autoras(es) que discorrem sobre a musicoterapia social e comunitária – visto que, para a construção reflexiva, esse campo traz visões mais ampliadas sobre sujeito, comunidade, saúde e cultura, a partir de perspectivas mais coletivas de autoras(es) como Demkura et al. (2007), Pellizzari (2010; 2011), Cunha (2016) e Arndt e Maheirie (2019; 2020).

A musicoterapia, portanto, é apontada em uma construção reflexiva como dispositivo clínico-político-social, capaz de promover mudanças de contextos no campo clínico e nos campos social e comunitário.

Para tanto, serão tecidas relações entre saúde e política em seu sentido macropolítico e, posteriormente, relações entre práticas clínicas no campo da saúde mental em seu sentido micropolítico. Também serão apresentados alguns exemplos de práticas não tradicionais no âmbito da saúde mental.

Como a disciplina em questão é a musicoterapia, faz-se necessário pontuar os aspectos sociais e políticos da música e, por fim, discutir caminhos possíveis para a intersecção entre a política e todos os seus atravessamentos com o campo clínico, para além do social e comunitário.

Saúde e política

Segundo Mbembe (2018, apud Ferreira, 2020), a partir de uma visão normativa e impregnada no imaginário social dos países do norte, a política é definida como um projeto de autonomia e a realização de acordo em uma coletividade mediante comunicação e reconhecimento. Ferreira complementa que:

“[...] no caso dos países da América Latina e África que passaram pelo processo de colonização e por uma normatização diferente da Europa ocidental, Mbembe fala de uma luta não por autonomia, mas sim da “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (Mbembe, 2018, p. 10-11 apud Ferreira, 2020, p. 118).

Para efeitos deste artigo, conforme Arendt (2002), compreendemos que a política se baseia na pluralidade dos homens e trata da convivência entre diferentes, tendo como tarefa e objetivo a garantia de vida em seu sentido mais amplo.

As múltiplas formas de conceituação acerca da política também estão presentes na tentativa de definir o que é saúde. Da mesma maneira, a diversidade cultural e as diferenças de cada indivíduo implicam em diferentes visões sobre o tema.

O conceito de saúde já passou por inúmeras definições. Para além das concepções científicas e da esfera médica, a definição de saúde envolve as subjetividades de cada povo e cada indivíduo. Sendo assim, neste ensaio consideramos que o conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural, e varia de acordo com a época, o lugar e a classe social (Scliar, 2007).

A relação entre política e saúde no Brasil passou a ganhar mais atenção com a formulação e o uso do conceito de Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (CNDSS apud Buss e Pellegrini, 2007).

A Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), criada por decreto presidencial em 2006, atua como um fórum estratégico que promove a organização do conhecimento sobre os determinantes sociais de saúde, para fortalecer o combate das iniquidades em saúde (CNDSS, 2006):

“Virchow entendia que a ‘ciência médica é intrínseca e essencialmente uma ciência social’, que as condições econômicas e sociais exercem um efeito importante sobre a saúde e a doença e que tais relações devem submeter-se à pesquisa científica. Entendia também que o próprio termo ‘saúde pública’ expressa seu caráter político e que sua prática deve conduzir necessariamente à intervenção na vida política e social para indicar e eliminar os obstáculos que dificultam a saúde da população” (CNDSS, 2006, s.p).

Sendo assim, a saúde seria, portanto, causa e consequência de parte do sistema político.

Clínica e política

Podemos pensar a clínica sob uma ótica tradicional e neoliberal, como um espaço do campo “privado”, onde uma relação é estabelecida através de uma demanda individual, psíquica ou orgânica, e a resposta (ou solução) pode ser apresentada por um profissional especializado. O espaço físico onde acontece essa relação também é privado, com limites muito bem demarcados. As concepções mais tradicionais de clínica acreditam que a terapia deve ser “apolítica” (Narvaz e Koller, 2007).

No entanto, Gondar (2004) explica que a prática clínica se realiza num plano micropolítico e que, assim como a política, a clínica é orientada pelo desejo, visando uma mudança através de ações para alterar a condição dos humanos. Sendo assim, trata-se de uma prática parcial e, portanto, política. É a partir desse pressuposto que este trabalho se baseia.

A musicoterapia começou a estabelecer-se como ciência em um contexto pós-guerra, no tratamento de soldados feridos – portanto, a partir de um modelo biomédico –, e acabou por assim constituir-se e consolidar-se ao longo da história, mantendo suas raízes nesse contexto (Leinig, 1977). Ou seja, conforme Arndt e Maheirie (2019), a construção epistemológica da musicoterapia é moldada por um tipo de prática inspirada no modelo biomédico. Assim, complementam: “Os modelos de musicoterapia mundialmente reconhecidos são criados entre as décadas de 1960 e 1970 e todos são voltados a questões clínicas e individuais. Não encontramos propostas que pensem a construção coletiva, que considerem o contexto social e cultural, rompendo com limites subjetivistas” (Arndt e Maheirie, 2019, p. 61).

Na musicoterapia brasileira, a clínica tende a ser reduzida ao sinônimo de setting (local), e aos elementos que compõem o atendimento da musicoterapia; assim, nos currículos e na formação dos musicoterapeutas brasileiros, sobressai a visão de clínica como espaço físico (Queiroz, 2006).

Mas a clínica, deve também ser compreendida pela sua dimensão relacional, vincular e prática, em diálogo com contextos e territórios. Conforme o conceito de clínica ampliada proposto pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2009) que não apenas rompe com os limites de espaço físico, mas também das formas de pensar e executar os processos de cuidado. De acordo com Campos e Amaral (2007), a clínica ampliada considera como elemento fundamental ampliar o “objeto de trabalho” da clínica. “A clínica ampliada baseia-se na construção de responsabilidade singular e de vínculo estável entre equipe de saúde e paciente”, ou seja, "a possibilidade da realização de uma clínica ampliada depende da construção de vínculo entre profissional e usuário'' (p.855).

Com a tendência pela humanização em saúde e da implementação de políticas públicas de saúde – como, por exemplo, a Política Nacional de Humanização (Brasil, 2004) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (Brasil, 2006) –, o trabalho multidisciplinar e intersetorial mostra cada vez mais que a melhora do estado de saúde está associada ao compartilhamento do sofrimento e à busca pelo enfrentamento de forma coletiva.

Dessa forma, ao levar em consideração que os sofrimentos individuais estão ligados a sofrimentos coletivos, a prática clínica atua como um dispositivo clínico-político que propõe estabelecer mudanças no ser humano e, consequentemente, em seu entorno. Neste sentido, conforme os conceitos de Biopoder e Biopolítica (Foucault, 1978), onde os saberes e disciplinas são utilizados para intervir nos modos de viver, pode-se concluir que não há intervenção psicoterapêutica, assistencial, médica, educativa ou religiosa que não seja política (Ocariz, 2015).

Clínicas não tradicionais: Algumas referências

No Brasil, temos Nise da Silveira (1905-1999) e seu trabalho no Engenho de Dentro como um marco que mudou a percepção sobre práticas em saúde mental no país.

Esta alagoana, uma das primeiras médicas do Brasil, psiquiatra, coordenou o Serviço de Terapêutica Ocupacional do Hospital Pedro II (Rio de Janeiro), fundou o Museu de Imagens do Inconsciente – que expõe trabalhos dos clientes/pacientes do ateliê terapêutico – e fundou a Casa das Palmeiras, um espaço com uma proposta pioneira, semelhante ao modelo de atendimento dos atuais Centros de Apoio Psicossocial (os CAPS, que compõem a rede de atenção psicossocial no âmbito do Sistema Único de Saúde) (Magaldi, 2020; Melo, 2001).

Nise, que possuía uma formação médica tradicional, sendo a única aluna mulher de sua turma, rompeu com as práticas medicalizantes, estigmatizantes e biologicistas do campo da psiquiatria e propôs aquilo que denominou “terapêutica ocupacional”, ou “a emoção de lidar”, como caminho possível de cuidado a pessoas em situação de sofrimento psíquico grave (Melo, 2001).

Em uma época na qual práticas como a Lobotomia ou a Eletroconvulsoterapia eram as evidências científicas usadas como principal recurso de tratamento, Nise se posicionou politicamente contra a reprodução de tais práticas, e apresentou uma nova abordagem que utilizava a arte e o afeto como principais ferramentas de trabalho (Da Silveira, 2017).

Sua obra e seu trabalho são ainda muito pouco difundidos nas formações de profissionais de saúde e de saúde mental – o que não é diferente no campo da musicoterapia. Com Nise da Silveira, atuou Ivone Lara (1921-2018), um dos maiores nomes da música brasileira, e pioneira no uso da música com enfoque terapêutico no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro (Pereira, 2017). Seu nome é invisibilizado na história da reforma psiquiátrica brasileira, e sabemos que a questão do racismo tem grande peso nesse apagamento.

O exemplo de Nise da Silveira nos permite refletir sobre os paradigmas colocados nos fazeres em saúde, trazendo a necessidade de constante questionamento e revisão de práticas já estabelecidas, como as pontes entre o fazer clínico e os fazeres sociais e comunitários.

Nise construiu sua base de trabalho dentro de uma instituição hospitalar e rompeu os muros do hospital, ao conectar os clientes/pacientes com o mundo externo – fazendo isso, inclusive, ao criar um equipamento de cultura, memória e patrimônio, como o Museu, dentro desse espaço.

Entende-se que, ao definir o trabalho de Nise, a demarcação daquilo que é prática clínica e daquilo que é prática social e comunitária se mistura. Portanto, sua atuação pode ser definida como dispositivo clínico-político, que permeia o âmbito tanto da instituição hospitalar, quanto da comunidade, e se propõe a mudar esses contextos.

Cabe citar aqui, o trabalho do Teatro Clínica DyoNises e do Hotel da Loucura, que se destacam também pela perspectiva fundante na arte, na política, e na proposta de continuidade do trabalho de Nise da Silveira no Rio de Janeiro.

A metodologia de Nise da Silveira, assim como a musicoterapia, integra os saberes da arte e da ciência. Desta forma, podemos tecer relações, onde é possível criar caminhos para uma prática clínica musicoterapêutica que se alinhe com uma perspectiva marcadamente política, que possa ser reconhecida como potência e como ciência, assim como o trabalho de Nise da Silveira é reconhecido.

Para citar outros trabalhos contemporâneos, temos práticas realizadas por grupos de terapeutas e profissionais da saúde mental, que pensam criticamente o cuidado e os atravessamentos políticos na produção de sofrimento psíquico e realizam sua clínica em diferentes contextos. Temos propostas como: Margens Clínicas, Consultório de Rua, Clínica Pública de Psicanálise, Psicanálise Periférica, Perifanálise São Mateus, Clínica da Cidade, e Clínica de Rua, todos eles apresentando trabalhos de escuta em saúde mental relacionadas com o território urbano; a Clínica do Testemunho, que desenvolve uma escuta tendo como ponto de partida a reparação psíquica de pessoas que sofreram violência do Estado na ditadura civil militar de 1964 (Ocariz, 2015); e o NEET (Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos), que tem um enfoque de atendimento a pessoas pertencentes a movimentos sociais.

No campo da musicoterapia podemos citar alguns coletivos que também têm ampliado perspectivas práticas na área para além do campo tradicional. Temos como exemplo o “Coletivo MT” realizando trabalhos com mulheres em situação de violência na periferia de São Paulo. Temos também projetos como o “Chama Trio - Grupo de trabalho e pesquisa em musicoterapia social e comunitária" em trabalhos em serviços públicos, e o “Integra Som”, em trabalhos em instituições públicas e espaços culturais na perspectiva da musicoterapia preventiva e social. O coletivo “ReconstruSom” com a pauta da habitação, realizando propostas coletivas de musicoterapia em ocupações de movimentos de moradia na cidade de São Paulo. Temos também o exemplo do projeto colaborativo “Melodia Musicoterapia”, com propostas de difusão da musicoterapia contextualizada com pautas emergentes da nossa sociedade, realizando por exemplo trabalhos com a população em situação de rua. Podemos citar também o projeto “Sonora Sororidade”, embasado sob uma perspectiva feminista, no trabalho voltado a grupos de mulheres. Temos também, trabalhos como o “Círculo Musical Feminista”, o projeto “O Musical é político”, e o grupo “Sons de Marias” que se propõem a fomentar a prática da musicoterapia comprometida com as questões de raça, classe e gênero, tanto em contextos da clínica individual, quanto em contextos coletivos, culturais e sociocomunitários. Cabe citar também que no final do ano de 2021, o coletivo de estudantes e profissionais de musicoterapia “Musicoteraprets” nasceu, com o intuito de visibilizar e ampliar a pauta racial dentro do campo da musicoterapia.

Esses trabalhos, bem como outras práticas orientadas por uma perspectiva marcadamente política, nos apontam caminhos possíveis para a construção de um potente campo de atuação em musicoterapia que esteja posicionado e comprometido com a mudança social.

A via política da música

A música é o elemento mediador das relações em musicoterapia; portanto, é urgente pensar sobre sua função política e social, sobre como os vieses eurocêntricos e estadunidenses permeiam nossa visão e relação com a música, e sobre como isso atravessa nossa prática como musicoterapeutas.

Tiganá Neves Santos (2019), por exemplo, reflete acerca da arte musical enquanto tradução de realidades – sobretudo culturais – na sua dimensão histórica (Santos, 2019).

O potencial coletivo pode estar presente tanto no fazer musical quanto na sua apreciação. Faz-se música para si mesmo, para os outros, para celebrar, louvar, lamentar, curar, se divertir, ritualizar momentos significativos da vida de indivíduos e da coletividade (Petraglia, 2013).

Para Alan Merriam, a investigação e o estudo musical deveriam ser objeto dos campos da antropologia, por considerar que o fazer musical é um ato social. Com esse pensamento, ele definiu, através de uma lista de categorias, as funções sociais da música (Hummes, 2004).

Em diferentes esferas, é possível encontrar o caráter político da música. Seja de forma diretamente ligada a movimentos sociais – como, por exemplo, em causas nacionalistas ou expressões de patriotismo –, seja para promover programas, engajar revoluções, ou ainda como afirmação de identidade cultural, ou para fazer crítica à normatização social imposta.

A história do movimento gay e da luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, por exemplo, não pode ser contada sem suas dimensões musicais. Em ambos os casos, o fator musical contribuiu para a conquista de espaços e direitos (Blanning, 2011).

Já no Brasil, reconhecendo o poder da música, o projeto de canto orfeônico proposto por Villa Lobos durante a era Vargas tinha estreita relação com a propagação do civismo e da disciplina social, que agradavam o governo da época (Cherñavsky, 2004).

Anos mais tarde, a censura imposta pela ditadura militar reconheceu a importância da música para a ampliação da consciência política do povo.

Conforme Cherñavsky (2004), a música foi diversas vezes utilizada por regimes totalitários como mecanismo transmissor de mensagens de caráter doutrinário, facilitando a recepção a medidas repressoras e de mecanismos de dominação.

Com relação a gêneros musicais específicos, temos o rap e o funk brasileiros, como bons exemplos do seu caráter intrinsecamente político, ao trazer nas letras elementos pertencentes a realidades marginalizadas (Dos Santos, 2017; Telles, 2019). Outros movimentos musicais, tais como a tropicália e o manguebeat também podem ser citados por seu caráter político (Fonseca, 2005; Gameiro e Carvalho, 2008; Andreolla e Oliveira, 2019). No contexto da música de concerto brasileira, podemos citar o festival Música Nova que no período da tropicália, também pode ser referenciado pela implicação política em resistência à ditadura, reunindo músicos eruditos em uma mesma luta política e estética conforme nos aponta Soares (2006).

Portanto, a música e o ato de fazer música estão sempre permeados do político, embora nem sempre se esclareçam como tal (Ikeda, 2001).

Araújo e Paz (2011) apontam a práxis sonora como “um ato imanentemente político, mesmo nas situações mais ordinárias da vida cotidiana não reconhecidas como atos políticos” (p. 222).

Santos e Lessa (2012) apontam que “ensaios produzidos no âmbito da Musicologia têm realçado o poder da música enquanto arte persuasiva e manipuladora, ou, numa outra linha de pensamento, o modo como a música pode estar ao serviço do poder, da ideologia e da política” (p. 10). Da mesma forma, Santos (2004) afirma:

“A música, como todas as artes, pode ser uma expressão da liberdade e da capacidade criadora da humanidade, devendo, por isso, ser considerada como um direito humano inalienável. Mais do que direito, cabe retomar aqui a ideia de música como atividade desejável. Trata-se de promover a música como crítica e reflexão – e não apenas registro, ou mero reflexo da sociedade –, como prática humana que possibilita que sujeitos em interação se eduquem mutuamente numa perspectiva mais solidária” (p. 211).

A significação do fator musical é permeada de subjetividades, decorrentes do contexto em que o sujeito está inserido. As pessoas, de acordo com contextos históricos, culturais e pessoais, atribuem e constroem significados à música a partir de suas vivências e experiências (Wazlawick et al., 2007).

Poli (2008) destaca a qualidade da música como contribuição social em virtude da sua capacidade de induzir afeto, salientando que a função social da música vai além da construção interpessoal e da mobilização cultural, pois detém o poder de influenciar a moral de um povo.

Cabe ao musicoterapeuta perguntar-se o que está sendo comunicado pelas músicas que fazem parte de suas sessões, atentando-se aos estereótipos e desigualdades de gênero, classe, raça, etnia e orientação sexual sustentados pelas músicas que são utilizadas (Steffen, 2014).

Assim, musicoterapeutas, ao estudarem a relação som-música-ser-humano, precisam estar atentos aos atravessamentos éticos, políticos, sociais e culturais na música, e nas relações que partem dela.

Discussão: Musicoterapia clínica e política

Para evidenciar o caráter político da musicoterapia, podemos referenciar a citação da World Federation of Music Therapy (2011), quando define que: “A investigação, a educação, a prática e o ensino clínico em Musicoterapia são baseados em padrões profissionais de acordo com contextos culturais, sociais e políticos”. Ruud (1990) afirma que, apesar da busca pela afirmação como disciplina própria, a musicoterapia sempre possuiu uma estreita relação com os campos da psicologia e filosofia. Ao conciliar arte e ciência, tradicionalmente consideradas opostas, a musicoterapia é considerada uma prática transgressora (Costa e Cardeman, 2006).

No âmbito das políticas públicas, podemos citar a presença da musicoterapia em duas das principais políticas sociais do país: no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) desde 2011 através da Resolução º 17 do Conselho Nacional da Assistência Social (CNAS), e no Sistema Único de Saúde (SUS), através da portaria 145 de 11 de janeiro de 2017 do Ministério da Saúde, que incluiu a musicoterapia como procedimento dentro da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do SUS.

As práticas musicoterapêuticas, de modo geral, se subdividem em atuações puramente clínicas, geralmente atreladas ao campo biomédico – como já apontadas por Arndt (2019) – e as práticas sociais e comunitárias, atreladas aos campos das políticas públicas e ao campo sociocomunitário.

Essa divisão implica na separação entre discussões do campo da política, pois os debates acerca dos sistemas de opressão e marcadores sociais, por exemplo, parecem ser mais aceitos como pautas no campo da musicoterapia social e comunitária, enquanto, no campo da clínica individual/tradicional, são pautas mais distanciadas.

Isso mostra não haver consenso sobre a política como parte do projeto ético-político da profissão, apesar de termos apontamentos sugestivos no Código Nacional de Ética, Orientação e Disciplina do Musicoterapeuta – onde encontramos, no que se refere aos deveres dos musicoterapeutas: “trabalhar com compromisso pautado no contexto social, voltado para atuação ético-política na sociedade, comprometida com a transformação social nos diferentes campos de atuação” (art. 6).

A chamada desse número especial proposto pela revista ECOS, por exemplo, demonstra este aspecto, quando busca discorrer sobre práticas descolonizantes, e os eixos temáticos mencionam apenas contextos de musicoterapia social e comunitária. Isso nos faz refletir sobre como discutir descolonização em musicoterapia é necessário à disciplina como um todo, e não apenas ao campo de atuação sociocomunitário.

De acordo com Arndt e Maheirie (2019, p. 63), “construções epistemológicas em torno da Musicoterapia Social e Comunitária ainda são incipientes na musicoterapia”. A defesa do presente trabalho, portanto, é de que os musicoterapeutas possam enxergar a necessidade de discussões profundas acerca do fato de que a política, os determinantes sociais em saúde e os atravessamentos dos sistemas de opressão estruturantes – como o racismo, o sexismo e o classismo – referem-se à disciplina como um todo.

Dessa forma, as discussões pertencem a todos os campos da musicoterapia, e não apenas àqueles que já se propõem a realizar outras práticas do fazer clínico tradicional, como é o caso das práticas sociais e comunitárias.

O musicoterapeuta do campo hospitalar, organizacional, da reabilitação neurológica, da saúde mental, do neurodesenvolvimento, entre outras práticas comuns à clínica musicoterapêutica, precisam ser convocados a refletir sobre suas práticas e exercitar um olhar politizado, que rompa com pressupostos como a hospitalização, medicalização e patologização dos modos de vida.

Os musicoterapeutas apropriam-se de técnicas e procedimentos a partir de metodologias e teorias que os fazem avançar e alcançar os objetivos terapêuticos.

Sendo assim, se a musicoterapia se assume enquanto prática capaz de fazer mudança, consequentemente assume-se enquanto prática parcial – portanto, política, biopolítica. Cabe, nesse sentido, questionar se o posicionamento da musicoterapia está comprometido com dimensões disciplinares e regulatórias, ou com práticas participativas e emancipadoras.

Assim como afirmam Costa e Cardeman (2006), é preciso pensar criticamente a sociedade na qual queremos incluir nossos pacientes/clientes, rever conceitos que nos foram impostos pela tradição e traí-los, para que possa haver evolução.

Considerações Finais

O intuito desse trabalho é provocar e, ao mesmo tempo, convocar os musicoterapeutas a introduzirem em suas práticas uma melhor e maior percepção sobre o contexto social e cultural, tanto nas práticas clínicas, quanto nas práticas sociais e comunitárias.

Refletir sobre nossos fazeres e tecer autocríticas continuamente, faz-se importante para questionar lógicas hegemônicas de produção e de pensamento em saúde. É necessário problematizar papéis e normas sociais para tornar a prática musicoterapêutica igualitária e horizontalizada. Tais questões implicam também no desafio de tornar a prática musicoterapêutica mais acessível.

Espera-se, com esta reflexão, ampliar o campo de discussões acerca da política no campo da musicoterapia e no âmbito clínico, para que possamos ultrapassar as barreiras de discussões limitadas, na maioria das vezes, ao campo da musicoterapia social e comunitária.

Reconhecer que a prática musicoterapêutica é intrinsecamente política é um passo necessário para que sejam acolhidos temas emergentes, como racismo, violências de gênero, classismo, violências de estado, capacitismo, entre outras formas de opressão a populações minorizadas.

Portanto, considerando as relações entre saúde e política, os aspectos políticos da prática clínica terapêutica e suas possibilidades, as funções políticas e sociais da música, podemos concluir que a musicoterapia é um potente dispositivo clínico-político, com grande potencial de transformação de contextos sociais.

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